segunda-feira, 23 de março de 2020

Baú da Gesteira: A pandemia de Cólera em 1833

Como estamos, de novo, em período de pandemia no mundo, vou aqui recordar alguns número de uma das piores pandemias que assolaram a nossa região. Trata-se da epidemia de Cólera (Cholera Morbus) que atingiu o país e também o concelho de Cantanhede em 1833.

Segundo se sabe, a doença chegou a Portugal com a embarcação London Merchant, que trouxe ao Porto o general Jean-Baptiste Solignac, comandante das forças liberais na Guerra Civil Portuguesa de 1828 a 1834, vinham nessa embarcação cerca de 200 militares, que se juntariam às fileiras do exército liberal. A partir do Porto a epidemia espalhou-se a outras regiões, entre elas Aveiro, Coimbra, e em Abril já há registos de casos em Lisboa.

Na região de Cantanhede e Arazede, o primeiro caso de morte por cólera (do meu conhecimento) aparece a 14 de junho de 1833, mas só a partir do final de junho começam a registar-se mortes com regularidade. Um pouco como a pandemia actual de Covid-19, sendo que, inicialmente, apenas há infectados, mas passados alguns dias começar a lamentar-se mortes.

Não se sabe ao certo quantas fatalidades foram naquela altura, mas uma parte significativa da população sofreu com a pandemia. Estamos em meios rurais, onde os principais locais de contactos e infecção eram a igreja e as eventuais feiras que existiam, portanto, desse ponto de vista haveria menos pontos de propagação. No entanto, a falta de condições e de higiene generalizadas e o débil estado de saúde (subnutrição, doenças crónicas não tratadas, falta de tratamento e acompanhamento médico) contribuíram para o elevado numero de mortes e para praticamente nenhuma acção de mitigação. A natureza fez, portanto, a sua limpeza.

Vejamos então o que se passou em Cantanhede por essa altura.

Nasciam muitas crianças por esses anos, nomeadamente uma média de 119 por ano em na freguesia de Cadima, 73 na Tocha, 108 em Cantanhede e 112 em Arazede (do concelho de Montemor-o-Velho), tendo em conta os anos de 1828 a 1835. Ançã tinha então uma média de 38 batismos por ano e Outil 17. No total de todas estas freguesias batizaram-se, em média, 440 crianças por ano entre 1828 e 1835. A média na Gesteira era de 5 crianças por ano, e no Zambujal 10.   


Ano Ançã Outil Cadima Tocha Cantanhede Arazede TOTAL
1828 53 20 108 77 105 101 464
1829 31 15 157 98 126 135 562
1830 45 22 105 70 123 113
478
1831 41 18 129 86 117 145 536
1832 26 19 * 61 107 96 309
1833 48 12 * 66 82 77 285
1834 34 20 116 77 99 114 460
1835 29 16 103 54 107 117 426
 Média 38.375 17.75 119.6667 73.625 108.25 112.25 440
Quadro 1: Registos de batismos entre 1828 e 1835 para 6 freguesias da região

* valores não disponíveis.

Estes valores dão-nos uma boa ideia da população existente naquela altura, assim por alto, tendo sido batizadas 265 crianças em 1828 e 1829 na freguesia de Cadima, eu diria que existiriam por volta de 1000 habitantes no dito couto. Para Cantanhede o número seria semelhante ou um pouco inferior.

Ora, quando a Cólera começou a ceifar vidas, quem mais sofreu foram justamente estas duas, Cadima e Cantanhede, o gráfico de mortes é o que é apresentado abaixo.



Figura 1: Óbitos entre Junho e Setembro de 1833 nas 6 freguesias

O pico de mortes deu-se em meados de Agosto de 1833, portanto, em pleno Verão. Os valores mais relevantes de referir aqui são:
- de 9 a 14 de Agosto faleceram sempre mais de 10 pessoas por dia na freguesia de Cantanhede;
- de 6 a 11 de Agosto acontece o mesmo no couto de Cadima, excluíndo no dia 10 onde "só" falecem 7.
- 9 e 11 de Agosto foram os piores dias para o global das 6 freguesias, tenho falecido 40 ou mais pessoas.

A última referência à Cólera aparece no dia 24 de Setembro de 1833, mas a 4 de Outubro do mesmo ano ainda faleceu alguém de "malina".

Em termos globais, o ano de 1833 representa claramente um aumento significativo no número de mortos (um aumento de 270% face ao ano anterior). No ano seguinte à pandemia temos um decréscimo de 65%, o que é natural, não falecem tantas pessoas e muitos dos mais débeis teriam falecido em 1833.


Ano Ançã Outil Cadima Tocha Cantanhede Arazede TOTAL Variação


1828 34 16 77 85 52 85 349



1829 38 17 122 74 49 75 375 +7%


1830 32 12 55 71 58 114 342 -9%


1831 45 13 72 51 45 69 295 -14%


1832 44 13 69 56 37 91 310 +5%


1833 152 61 288 129 266 252 1148 +270%


1834 43 32 102 40 109 76 402 -65%


1835 44 15 86 73 93 101 412 +2%


Quandro 2: Número de óbitos nas 6 freguesias (1828-1835)

Globalmente estimo que terá falecido entre Junho e Setembro de 1833 cerca de um quinto a um quarto da população das 6 freguesias (Ançã, Outil, Cadima, Tocha, Cantanhede e Arazede).

O problema foi, naturalmente mais grave em Cantanhede, onde a população vivia mais junta na localidade e o contágio terá sido maior, mas em valores obsolutos, Cantanhede, Cadima e Arazede tiveram valores muito semelhantes entre 250 a 300 mortos num só ano. 

Figura 2: Valores absolutos de óbitos (1828-1835)


Face ao ano de 1832, em percentagem, Ançã teve  um aumento de óbitos de 245%, Outil 369%, Cadima 317%, Tocha 130%, Arazede 177% e Cantanhede 619%. Significa isto que na Tocha faleceram pouco mais do dobro das pessoas do ano anterior, mas em Cantanhede faleceram cerca de 7 vezes mais pessoas.

Figura 3: Variação de óbitos face ao ano anterior (1832)


No que diz respeito à Gesteira, esse ano também foi horrível, tendo sido registados, em 1833, 17 óbitos, quando a média era de cerca de 4 óbitos por ano (quatro vezes mais). O Zambujal teve um aumento de 9 óbitos por ano para 48 (cinco vezes mais), e, Cadima (a vila) também quase quadriplicou o número de óbitos, se bem que o valor absoluto, neste caso, é quase irrelevante (4 mortes em ano de Cólera).


Ano Gesteira Zambujal Cadima
1828 4 5 1
1829 6 14 1
1830 6 2 0
1831 4 6 2
1832 2 7 0
1833 17 48 4
1834 3 18 1
1835 1 11 3
Média 3.714286 9 1.142857
Quadro 3: Valores de Óbitos para Gesteira, Zambujal e Cadima (1828-1835)

Os que sobreviveram permitiram a que estejamos aqui hoje, e assim será também com a pandemia actual, sobreviveremos e nos tornaremos mais fortes.
#AndràTuttoBene

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