D. Afonso I (Afonso Henriques) |
O texto que segue representa a minha transcrição de uma pequena parte do livro "Memorias de litteratura portugueza" da Academia das Ciências de Lisboa, Tomo II, Anno 1792.
Na parte final do excerto o autor indica que foi na altura de Dom Afonso Henriques (n. 1109, f. 1185) entre 1139 e 1185, após a explusão dos mouros da Beira, Estremadura e Alentejo, que o rei doou os terrenos então reconquistados a catedrais e mosteiros para que estes fomentassem a sua povoação e exploração agrícola. Segundo o autor, foi nesta altura que o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra repartiu (e partilhou por convenções) terras nas regiões de Cadima e Tocha, podendo ter dado origem à criação de povoações naquela altura.
MEMORIA
Para a Historia da Agricultura em Portugal.
Queres principiar a Historia da Agricultura em Portugal desde antes da fundação, e independencia desta Monarquia, he querer tirar a luz do centro da obscuridade. Nossos maiores pouco sollicitos de nos deixarem memorias, e o tempo consumidor de tudo, nos embaraça de subir taõ longe. Na falta de testemunhos precisos, e particulares, bem podemos lembrar-nos de huma idéia vaga, e geral, de que os Gregos, os Romanos, os Septemtrionaes, e os Arabes conheciaõ, e procuravaõ o nosso paiz, como fértil de todos os géneros, que remedeiaõ as primeiras, e segundas necessidades da vida, e que concorrem á delicadeza, e á Policia, os quaes eu reduzo á tabela seguinte:
1º Grãos = Cerealia.
2º Legumes.
3º Fructas, e Hortaliças.
4º Texturas = Lans, Linhos, Sedas.
5º Liquores = Azeite, Vinho, Mel.
6º Gado grosso = Armenta.
7º Madeiras.
Estes saõ os géneros, em que Portugal foi sempre fecundo. A diversidade dos tempos, fez que nem sempre florescessem igualmente. Isto he o que eu hei de hir mostrando. Como escrevo a sábios naõ meterei pelos olhos o que digo: contento-me de o deixar ver. Julguei que o modo mais accommodado ás minhas primeiras ideias, era discorrer pela vida de cada hum dos nossos Principes, e mostrar ahi o aumento, ou decadência da Agricultura, e as suas causas. Serei breve, fugindo de ser escuro.
I
Do tempo do Conde D. Henrique até a ElRei D. Pedro o I.
O Terreno que chamamos Portugal, no tempo do Conde D. Henrique era, grande parte, senhoreado de Mouros, inimigos irreconciliáveis dos Nacionaes, com quem viviaõ quasi sempre em crua guerra. O caracter da guerra d’aqueles tempos era principalmente de corridas, de salto, e de pilhagem, a onde de parte a parte se roubavaõ os fructos, e os rebanhos. Os Lavradores, destas continuas inquietações sempre assustados, e penas cultivavaõ as terras mais vizinhas ás casas fórtes, e povoações muradas, donde facilmente podessem ser auxiliados das irrupções dos inimigos. Com a maõ, hora nos instrumentos da cultura, outra hora nos da guerra pela maior parte colhiaõ, e pelejavaõ.
Nas Provincias do Minho, Tras-os-Montes, e huma parte da Beira se vivia com mais repoiso. Ahi mais a salvo os Lavradores, semeavaõ, e colhiaõ. As colheiras eraõ principalmente de trigo, centeio, cevada, e legumes. As fructas, e hortaliças eraõ abundantes á proporção do povo. O azeite era rarissimo no Minho; havia suficiente na Beira, e Tras-os-Montes: (1) do mesmo modo era o vinho. Os mais géneros floreciaõ medianamente.
Ainda entaõ se naõ tinhaõ introduzido tantas diferenças de qualidades na Ordem politica. Hum Lavrador era hum homem bom, hum homem honrado, que rodava com todos os bons Patriotas, e ocupava os honrosos cargos públicos do Lugar em que vivia.
O Conde vendo, que havia bastantes terras incultas, que era necessário cultivarem-se para a subsistencia do Estado, e que por outra parte os cuidados da guerra lhe naõ deixavaõ empregar-se de propósito neste empenho, buscou modo, com que, sem faltar aos ministerio das armas, promovesse a Agricultura. Repartio largamente as terras incultas por alguns corpos de maõ morta, como ás Cathedrais de Braga, e outras, e aos Monges Benedictinos; e tambem por muitos Senhores da sua Corte, que as fizessem cultivar. (I) A Cathedral de Braga repartio estas terras, afforando humas, dando outras aos Lavradores com a convençaõ de certas partilhas na colheita dos fructos.
Os Monges em parte fazendo o mesmo que a Cathedral, em parte dando ainda melhor exemplo, tambem promovêraõ a cultura. Viviaõ ainda estes respeitáveis Monges em todo o rigor dos trabalhos Monasticos. Multiplicáraõ, com o favor do Conde, os Mosteiros, aonde se recolhiaõ nas horas de repouso, e Oraçaõ. O mais tempo empregavaõ em cultivar por suas próprias mãos as terras que lhes fôraõ doadas, dando testemunho publico da sua observancia, e do amor ao trabalho honesto, e proveitoso, fundando ao mesmo tempo muitas povoações, e Freguezias para commodo d’aquelles seculares, que por algum modo se aggregavaõ ás suas lavouras, donde veio ser a Provincia do Minho a mais povoada, e por consequência a mais abundante.
Estas Communidades de Monges lavradores se augmentáraõ tanto, que além dos Mosteiros Lorvaniense, e Bubulense serem muito povoados, o Palumbario, segundo escrevem alguns, chegou a ter 900 Monges. (I) A utilidade intrinseca de Agricultura, os exemplos destes virtuosos Monges, o favor do Principe, e dos poderosos, para o augmento da povoaçaõ, e por consequencia da Cultura, tudo animou os homens, e começaraõ a empregar-se com mais gosto nos trabalhos da lavoura.
Neste tempo ainda naõ era cultivada por nós, mais que huma pequena parte da Estremadura. A Beira nem toda era cultivada. O Além-Téjo era ocupado de Mouros, que naõ deixavaõ trabalhar os naturaes, opprimindo-os ou com escravidão, ou com a guerra.
Entrou o governo d’ElRei D. Affonso Henriques, em cujo tempo já nas três Provincias havia muita colheita de grãos, vinhos, e azeite, principalmente nas vizinhanças de Coimbra. Duarte Galvaõ, e Duarte Nunes do Leaõ nos contaõ, que estando este Principe em Guimarães vieraõ os Mouros cercar Coimbra, e destruiraõ = pães, hortas, vinhos, e olivaes, com tudo era tanta a abundancia destes generos na Cidade, que davaõ cinco quarteiros de trigo per hum maravidy de ouro e dous moros de vinho per outro meravidy = saõ formaes palavras por que Duarte Galvaõ se explica. (I)
As armas Portuguezas conduzidas por este Principe foraõ correndo pela Estremadura, entrando por Além-Téjo, e compellindo os Mouros até aos fins da Monarquia. Novas terras conquistadas pediaõ novos povoadores, e colonos. Elle todo ocupado na reparação da Patria, vendo que os trabalhos da guerra lhe naõ deixavaõ pôr todos os esforços no augmento da Cultura, seguio os vestigios de seu Pai, já em cuidar, que se fizessem novas povoações, ja em repartir as terras pelos Corpos de maõ morta; deu muitas ás Cathedraes de Vizeu, e Coimbra, que fizeraõ fundar inumeraveis povoações, (2) outras muitas aos Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. (I) Estas corporações repartíraõ tambem as terras pelos seus colonos com foros, ou por convenções de partilhas na colheita, por terço, quarto, e oitavo; e esta foi a origem dos direitos que este Mosteiro ainda hoje tem nos campos de Cadima, Tocha, Antuzede, Reveles, Ribeira de Frades, Condeixa a Nova, e Vetride povoações, que aquella Communidade ou fundou, ou reedificou para commodo dos seus Lavradores.... (continua)
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